O charme discricionário da magistratura
Alice, escriturária de 3ª classe da CM de Felgueiras, foi constituída arguida num processo judicial, por se verificarem fortes indícios de que se havia apropriado ilicitamente da laca da Senhora Presidente da Câmara, crime doloso de superior moldura penal. Dado que o desempenho do cargo a colocava em posição de perturbar o inquérito (podia ocultar a lata) e que – atendendo ao seu penteado estilo M. Eanes - havia séria possibilidade de repetir a conduta criminosa, foi-lhe aplicada, como medida de coacção, a prisão preventiva.
Berta, funcionária judicial, partilhava com Alice o vício da laca desde que ambas haviam andado de aprendizas no conceituado salão de cabeleireiro da Dona Cesaltina, pelo que a alertou para a aplicação da medida ainda a juíza mal tinha aposto a firma na douta decisão.
Sentindo, de súbito, no seu mais profundo âmago, um desejo incontornável de averiguar das propriedades fixadoras do mamão e da goiaba, Alice, que, por acaso de lusofonia, nascera em Luanda, filha de um brasileiro de Mato Grosso e de uma portuguesa de Marco de Canavezes, e possuía tripla nacionalidade, viajou para o Rio de Janeiro, via Vilar Formoso. Foi emitido mandado para a sua detenção, mas como - bizarra coincidência - o Brasil não extradita nacionais, Alice por lá se manteve, incólume e próspera. Abriu até uma barraquinha de brushings rápidos em Copacabana, muito frequentada por actores das novelas da Globo e apareceu imensas vezes – a star was born - na Fronhas Notícias.
No entanto, Alice não era feliz. Sentia a falta do perfume cosmopolita de Felgueiras e a nostalgia do guichet das coimas. Decidiu, assim, regressar, entregar-se nas mãos cegas da justiça e lutar para provar a sua inocência. À cautela, o defensor oficioso, jovem borbulhoso que acumulava o estágio com um part-time de lavador de cabeças na D. Cesaltina, requereu logo a revogação da medida de coacção. Afinal, o inquérito estava terminado, a lata segura e o perigo de repetição da conduta dirimido pela falta de acesso ao apetecível fluxo.
Debalde. Ao entrar em território nacional, Alice foi imediatamente detida e conduzida a um estabelecimento prisional, em cumprimento do mandado pendente. Como era uma figura pública - penteou ídolos e, embora em maus lençóis, aparecera em muitas Fronhas - os media noticiaram lestos a sua detenção. Em boa verdade, a comunicação social sabia antecipadamente do regresso de Alice e estava de plantão ao aeroporto, licitando com frenesim a sua presença como estrela da companhia.
Entretanto, em Felgueiras, terra de gente pacata, a juíza do processo, moça com pouco que fazer, como, aliás, é triste sina dos magistrados portugueses, via-se forçada a passar seus dias vendo televisão no gabinete. Estava vidrada no Jorge Gabriel, quando lhe aparece a Dona Cesaltina, insigne coiffeuse, magnata da indústria e padroeira das aprendizas, que também fazia uma perninha como vendedora ambulante de produtos capilares, e por ali passara, incidentalmente, para deixar umas amostras. Amostra aqui, amostra ali, Dona Cesaltina tocou de forma inadvertida no comando da juíza e eis que esta deparou com Alice em todo o seu esplendor, cabelo ao vento e auréola polida, clamando inocência bronzeada no pequeno ecrã.
Hossana, - gritou a juíza - finalmente, tenho algo para marcar nesta aborrecida agenda virgem! E logo escreveu, no espaço do dia, não uma, mas (oh, fartura!) duas tarefas: "Ouvir a Alice" e "Decidir sobre a Alice". E vai de mandar fax para as polícias: "Tragam-me a Alice". Claro que o fax ainda demorou um pedaço a cumprir pois as estradas estavam pejadas de repórteres, mas a juíza não se atrapalhou e foi estudando a lei, deduzindo as razões e rascunhando os fundamentos, até que, ao fecho da secretaria, lhe foi presente a Alice. Por instantes, dado o adiantado da hora e o seu hábito de não perder os Morangos, a magistrada ainda pensou em deixar o assunto para o dia seguinte, mas em Portugal os juízes decidem sempre sobre a liberdade das pessoas em menos de vinte e quatro horas e ela não queria manchar o currículo. Pelo que pegou a alimária pelas madeixas. Que currículo de magistrado é coisa séria e, como a mulher de César, não lhe basta ser, tem de o parecer.